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  • Foto do escritorirenegenecco

Ceia de Natal


Foto de Debby Hudson na Unsplash

Maria chegou em casa, quase meia noite. Mais um pouco e seria seu aniversário. Sentou no banquinho mocho. Pensou em sua mãe. Ano passado tava ali. Sentavam juntas, junto a uma mesinha velha, do tempo ainda da vó. Ela que sugeriu, aliás, para a filha que paria, o nome do bebê, que acabara de nascer de supetão, em casa mesmo, debaixo de um telhado avarandado do casebre: Maria Natal, por ter nascido logo após a meia noite de um 24 para 25 de dezembro. Agora estava só, sua mãe partiu para o além, dando sequência à vida que não tem morada fixa, a não ser no divagar pelo infinito reino do céu. Um véu de lembranças cobriu-lhe o agora que deslizou vários degraus abaixo de um passado que nunca  passa, se vestindo de saudade, que não tem idade, por isto não tem fim. Sim, comiam pão dormido, quando tinham, comemorando a graça da vida, que se renovava todo o ano no menino de Belém, ao que se unia um cumprir anos de Maria. A aventura terrena tão bruta, pra uns, mas sempre generosa em esperança, pra todos.

Maria Natal tinha os pés bem doídos. Andara o dia inteiro à cata de material reciclável. Ah, se eu fosse reciclável – pensou. Mas quem disse que não sou? Sei eu pra onde vou, depois daqui? O corpo recicla, eu sei, adubando a terra e alimentando sementes de lindas flores, de relva, de ervas do campo, de frondosas árvores... Isto já me basta, suspirou. Sempre gostara de seu nome, porque a cada ano renascia junto com o Cristo. Nem sabia bem que seria isto. Cristo? Uma grande luz, ao preço de uma pesada cruz. O bem que não se acaba, que se alinhava e se trama na carne da gente, movendo céu e terra em busca da paz, da harmonia e do silêncio dos afogados em mares desconhecidos. Ateus, sem Deus - ainda que apenas de boca.

Maria se esvaía do barraco e subia aos céus de estrelas que eram só suas. Absorvia agora seu desejado descanso do corpo massacrado pelo calor, pela andança, pela esperança perdida nas esquinas, nos olhares excludentes, num ser invisível na multidão, na transparência de si mesma que lhe negava o direito de ser diante do outro. Os mosquitos lhe sugavam nas canelas. Sei de uma mansidão que me cobre o coração de paz, às vezes – pensou. Natal, o que afinal quer dizer? Será que quer dizer mesmo alguma coisa? Ou é só história pra boi dormir, como dizia minha avó, não do Natal, mas de fofocas e diz que disse que. Maria Natal mexeu numa sacola de pano, pendurada no ombro por um cordão. Já que não tenho pão pra comer, vou ler este papel, pra descansar e dormir. Maria se referia ao panfleto colorido soprado pelo vento, parado aos seus pés. Tinha a imagem de Jesus na manjedoura e uns escritos. Se abaixou, juntou e arremessou no saco de pano, pendurado a tira colo. Naquele exato momento ressuscitou lembranças. A maior herança que pude ter foi aprender a ler – cochichou. Agradeço à D. Esmeralda, Deus a tenha! Fora sua patroa aos 12 anos, quando lá morava, para cuidar de um bebê.

Retorna ao barraco escuro. Dali fugira num rasgo de tempo imemorável – anos luz - onde jamais caberia remendos nem cerzidos  no agora. Ouve o zunido de mosquitos e insetos do verão. Mergulhada na escuridão tosca e fosca de alguns palmos de seu canto, tateia rumo a uma pálida luz amarela. Pendurada por um longo fio desce do barrote, suporte do telhado, a lâmpada de 15 vates. Maria Natal lê de vagar, saboreando a companhia da mensagem, como se fosse o pão dormido, que desta feita, não tinha.

Bateram à porta do barraco. Maria ouviu alguns foguetes espocarem longe, na cidade. Era passada a meia-noite. Levanta dolorida do banquinho para abrir a porta. Oi, Maria Natal! Feliz Natal! Feliz aniversário, felizarda de nascer com Cristo, todo o Ano! Era a vizinha convidando pra comer o panetone que ganhara da patroa.

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