(continuação do post O Silêncio de si mesmo)
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Meditar parecia-me um dissociar-se de si mesmo, pelo menos de início, mas nunca se me pareceu encenação, como eu sentia nas reuniões dançantes da minha adolescência. Sentir-me deslocada das atividades dos jovens meus colegas e amigos me causava um tanto de aflição. Quando muito tempo depois de adulta, conheci a meditação, fui aprendendo e observando que sair de si mesmo é metafórico, e pode significar se fundir com tudo. Este tudo nos revela uma sensação de grandeza, profundidade e plenitude, impossível de traduzir em palavras. Está longe de significar algum dano emocional ou existencial. Vai diluindo uma carapaça, uma couraça num despir-se do escafandro que nos encobre. É um emudecer ativo, um silenciar do corpo, que nos permite adentrar numa parte nossa sutil ao extremo, e sentirmo-nos libertos de opressão. É uma ação de força e movimento, sem movermos um dedo sequer. Talvez desse para dar o nome de consciência da alma da vida. Impessoal mas onipresente. Por isto a apóstrofe no título Medit'ação. O ato de meditar é como afrouxar amarras, que usamos para interagir no coletivo, na exigência do mundo físico. Neste afrouxar a censura do que a psicologia chama de superego, fui começando a distinguir forma e conteúdo, como faces da mesma moeda. São a mesma coisa. Este é um ponto crucial, mas vou parando por aqui, pra não ser tragada pela abstração, e mergulhar de cabeça na metafísica. Não sei se pratiquei e entendi certo a meditação. Mas o que de melhor descobri foi a prática do silêncio de mim mesma.
Quando silenciamos todos os arrazoados sobre nossos pensamentos, e as queixas de coceira ou adormecimento insinuadas pelo corpo, numa vã tentativa de interromper o que parece um insuportável desconforto, permitimos que os pensamentos simplesmente fluam. As coisas saltam, se libertam de nossas definições, e vamos assumindo aos poucos o papel de observador, livres de qualquer julgamento. Os pensamentos passam a ser só coisas, os nomes apenas nomes, e os significados mergulham num nada. A gente percebe que está imerso em ruídos, e que nós mesmos somos um deles, corporificado. Parece que se rompe um limite que só esteve ali por necessidade técnica de discernimento, numa vida de símbolos e signos, onde necessitamos nos comunicar minimamente. A palavra vira tão somente um artefato. Somos artífices dos fatos, ou daquilo que se nos apresenta como fatos reais.
Lá, no quartinho frente para o mar, quando eu morava na praia, o som das ondas começou a libertar-se desta definição. Sentar-me em absoluto silêncio e imobilidade, postar-me em atitude de pura observação, livre de definição e juízo, agigantava meus poros, e minha alma iluminava o entorno e se iluminava. Já não eram poros tangíveis que se pudessem entupir do pó da limitada condição humana de falar. Era a alma se esparramando, como pérolas de um colar que se rebenta. Era um anonimato sagrado. Eram coisas anônimas, em pura sonoridade, como se uma palavra se reduzisse tão somente a caracteres de escrita, diante dos significados e significantes sons da vida. Palavras e pensamentos, que ecoam confinados na nossa cabeça, aos poucos vão voando, como pássaros, se tão somente os observamos. Perdemos o medo de sermos abatidos pelos caçadores de opinião. Cada som, interno ou externo, é uma pérola que rola no espaço. Rompe-se aquele fio do colar que muitas vezes corta nossa jugular, e viramos mortos vivos.
Com a individualidade preservada no ponto central da consciência, que já não se chama José, ou Maria, ou João, nem vento, mar, pássaro, murmúrio, latido, grito, grandeza, finitude ou infinitude, o real impõe sua verdade, apenas no existir em si. Descubro que isto é o verdadeiro respirar. O deixar de ater-se ao nome das coisas liberta da solidão, conforme a expansão da consciência dividida no ser e no nada. Ser e não ser é uma dualidade que se dissipa no silenciar de nosso eterno blá blá blá do dia a dia. O SER brilha inconfundível.
Será a consciência humana nadificante? Teremos este poder de transformar, dar outra forma às coisas através da palavra? Acredito que não damos outra forma à realidade, mas a refletimos, como um lago sereno. Compreendemos melhor o que seja consciência, ao ultrapassarmos os limites físicos, pela concentração no silêncio. Desponta uma realidade que difere de nossas conclusões sensoriais, ou intelectuais, limitadas a um cérebro. É como rasgar-se uma cortina, ou dissipar uma neblina. O silêncio de si mesmo não é mudez ou ausência de ruído perceptível por nervos auditivos, não é uma circunstância, mas um estado. E tudo isto acontece. Simplesmente acontece, sem antes nem depois, acima ou abaixo, nem encadeamento de lógica humana alguma.
É muito louco tudo isto, mas me parece muito lúcido. Se alguém entender, por favor se manifeste!
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