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A Agonia do Eu

Atualizado: 13 de jan.


Foto de Tamara Menzi na Unsplash

(Fruição dos posts "Quem é você?)

Eu estava num momento de resgate de meus pedaços. Olhava uma caixa de feltro vermelha, cheia de passado feito em foto’grafias. Imagens grafitadas na lembrança, muitas vezes fugidias, desapercebidas no chão escorregadio e efêmero do presente. Se transformam em hieroglifos indecifráveis para quem não as viveu, ou para quem as quer esquecer.

Adentrei fundo meu olhar numa pequena foto desgastada e amarelecida. Entrei nas sombras de seus contrastes, e me perdi. Uma voz se fez ouvir, do fundo de um emaranhado de emoções: Era uma vez uma menininha. De repente, me vejo num envelhecer até então não percebido com tanta clareza, e me encontro nesta pequena foto antiga, aos seis anos.

A menina tinha um grande laço de fita branca, prendendo para trás parte do cabelo escuro e macio. O corte curto, à altura do queixo, lhe emoldurava uma pele delicada, tenra, em transição entre bebê e menina. Tinha um sorriso despretensioso, marcado por uma grande porteira, na falta de 4 dentes superiores.



O túnel do tempo me transporta de repente para debaixo de sua pele de novo. Abstraída em questionamentos, fico pensando nesta união de esferas temporais. São reais? O que é real? O que passa e o que permanece?

Uma sensação estranha me fala que eu e a menina somos um só ser, desde sempre. Mas não só isto. Eu e todos, e tudo que constitui minha consciência de existir. Nesta percepção inclusiva consoladora, nenhuma dimensão de encantamento e espontaneidade precisa ser engolida pela finitude. A memória é um espaço por demais estreito para abrigar a vida, em sua plenitude, com todos os seus risos e lágrimas. Volto à criança amarelecida. Pegá-la ao colo? Surrealmente é ela que me toma pela mão. Emudeço. Desço e mergulho em sua inocência. Julgava tê-la perdido.

Valho-me do resgate. Indago-me quem sou. Mulher? O que é ser mulher? Sei, desde algum tempo perdido no caminho, que sou gênero feminino. Tenho certas liberdades e certas coerções, que me incluem ou excluem da pertença à tribo. São limites impostos de um ser mulher, na relação com outros. Veste rosa, veste longo, veste mini, coxas de fora, usa batom, come bombom, quando está frustrada. Anda na vila, desfila no carnaval, vai pro convento, anda ao vento, no intento de possuir um si mesmo que a liberte. Quem és tu?

Mulher que me permito ser além do que dizem que me convém. Quero adentrar na grandiosidade de também ser um ser humano. Sem gênero, número e grau, sem macho e fêmea, sem jovem e velho, pobre ou rico - sem mais nem menos te evaporas em horas de silêncio de ti mesma - e é assim, que integrada em tudo, me construo um eu-tu, entre nós.

Quando adentro neste prisma, há somente a grandeza e minha consciência disto. Mas não é grandeza de hierarquia, ou de soberba e ímpeto de dominar. É grandeza onde cabem todas as minúcias da alma, ditas por muitos ‘coisas pequenas’. Volto a pensar nesta união de esferas temporais. São reais? O que é real? O que passa? O que permanece?

Quando me embrenho em profundidades que me perturbam, a música me dá asas. Me envolve e solta coisas coladas lá no fundo da alma. Quando gosto de uma música, escuto centenas de vezes, pelo poder que me concede de abrir portais – na maior parte das vezes de lágrimas. Adentro em mistérios inenarráveis, sonhos, sombras e luzes de lugares nunca desgastados pela rotina de rótulos e carimbos. É o silêncio da escuta que instiga, assusta, mas mobiliza à paixão, que nunca rompe laços com a emoção, numa melodia mágica.

Escuto atenta a cantora extremamente emocionada e concentrada na sua interpretação - Nothing Compares 2U . Nada se compara a você. De fato, vivi na pele paixão de queimar identidade. Porém o que se compara ao meu eu, se ele se esvai e se funde num eu alheio? Fico me perguntando se eu seria este você, para você. Para isto serve a paixão, para cegar com a fumaça deste fogo que consome o racional.

Percebo que a grande via sacra da música, percorrida magistralmente pela cantora (que vivifica a personagem), é sobre uma perda irreparável, no rompimento do namoro, como se um pedaço vital seu tivesse ido embora colado com o outro que decide abandoná-la. Ela, quebrada, não encontra mais seus pedaços.

- Sou incapaz de amar agora, e isto me tortura para a eternidade – parece gritar.

Talvez eu não precise de ninguém para me jogar em cima, como um amortecedor de quedas. Talvez seja apenas uma divagação me derramar e me fundir no “outro”, como epifania dos desejos. Talvez tudo isto seja imatur’idade - falta de um ir contínuo pelo que vier, sem queixas.

Nas escolhas, me abstenho de um mim mesmo, que sequer sei ser de fato meu. O outro me parece a única fonte de vitalidade e suprimentos afetivos. Me esvazio do vazio que me persegue. Tenho medo de cair no abismo do meu eu, transparente e volátil, silencioso e, por vezes, cruel. Surpreendo-me em milhares de perguntas incoerentes para respostas incongruentes, enquanto a melodia rola e um tímido sol bate de soslaio na pequena foto, sobre a mesa. Quero concentrar na canção.


Foto de Dan Hadar na Unsplash

Divago num olhar psicanalítico de esquina. Adentro na ‘personagem’ que debulha sua dor. Tomo sua máscara. Este fervor num “tu” insubstituível e incomparável se refere ao M’EU eu perdido, trincado, interrompido por uma apóstrofe egóica de posse, quando me ponho no outro. Sou eu que respiro o outro, sou eu que mastigo o já mastigado.

Eu me abandono, e minha alma não aceita, não suporta. É um gosto amargo de luta comigo mesma - entre um eu que presta e outro que nada vale. Pior que são reflexo um do outro, nunca alcanço o verossímil. Me adentro e me afundo no poço de um eu que desconheço. Vejo traços e rastros.

Sei que não sou uma combinação de traços relacionais. Vejo uma individualidade em mim, um tanto efêmera, fugidia, oculta ao juízo formal e racional. Mas ainda assim um ponto vazio do ‘tenho que’, que me parece meu. Um ímpeto que me atira no ringue, na luta entre uma identidade forjada de fora e meu desejo interno e propulsor de ser um eu livre.

De repente, retorno à canção, e meu olhar cai na menina em sépia sobre a mesa. Esqueci desta criança. Esqueci que você era eu. Ou melhor, que eu era você... Olho manchas marrons em minhas mãos. Volto aos vincos fundos no meu rosto. Esta parceria entre presente e passado, de certa forma me assusta. Porque neste emaranhado de algumas coisas boas e outras nem tanto, preciso tecer a minha estrutura, e vejo que o manto já está tecido.

É preciso valer-me de outros fios, outras cores, outras texturas. O emaranhado de fatos e pessoas que passam pela minha vida parece mais real do que o meu eu. Uma bola feita de fios vincados de outras tecituras, que enrola e desenrola, ao sabor da ventania da vida, e do impulso de outras mãos. Um fio usado em outras gerações, que se desmancham ao longo de séculos, me trama em nova criatura. Me comanda, me dirige, me acalenta, me ama, me odeia, me ergue e me derruba, num ser de linhas que não teci de um todo. Eu apenas me movo ao sabor de ordens e decretos.

Existem fios neste emaranhado que são fortemente amarrados, encaroçados de nós, nunca de eu-tu-eles. Caroços de lã que mais machucam do que aquecem. Mas nesta trama também existem traços, murmúrios, cochichos, que me amparam e me mantêm de pé, ainda que trôpega. O amor.

Não falo de homem nem de mulher, homo, hétero, trans, nem de pretos, pardos, originários, europeus, africanos ou estirpes genéticas. Não falo de gêneros efêmeros. Falo do espírito que a tudo move, que paira sobre toda a atmosfera de viver. Estas contradições me edificam, em constante ameaça de desmoronamento.

Há momentos em que me fogem quaisquer definições, e me sinto privada de elos, como uma massa amorfa. É o indizível, penso. Ou o desafortunado, ou o fraco de ideias, ou um tolo. Tudo são palavras. Não cruzam o oceano de singularidades vivenciadas, que ao serem ditas incluem todos no mesmo barco, na aventura de viver.

A canção emudece. Termina minha seção psicanalítica de mesa de bar. Palavras vazias criam um lapso de silêncio entre um eu e o outro. O bem e o mal perdem a força das aparências. A aflição se abranda. É preciso apostar no que fica. Isto só o tempo revela, como o escuro num estúdio de fotos.

O silêncio é o pai das profundezas que nos geram, na vitória ou na derrota de nossos sonhos. Mesmo no desencanto não desisto de pensar. Não desisto de falar. Não desisto de escrever, grafitar no muro das lamentações, de madrugada, gritos de alerta, enquanto a cidade dorme. Fico no aguardo, no silêncio intermitente permeado de quem sou, que me aflige e me conflita, mas me consola e acalenta.

É um eu-tu que desvela a tecitura do amor, debaixo dos panos de guerra de meus conflitos. O amor não impõe condições, e o que me nutre e me pertence de fato é minha consciência dele. Olho a fotinho desbotada. Inspiro e expiro longamente. Algo flui macio e devagar. É na consciência viva que o passado se unifica no presente, sem peso, sem mágoas, sem julgamentos. Sem idade, cor, gênero, raça, etnia.

Era uma vez uma menininha que me faz presente o passado. Eu te trago ao presente, criança viva, e cruzamos juntas o portal do tempo que não se extingue, mas que transita em vozes infindáveis, através da história. Estamos ambas de volta ao lar!


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Angela Rosana
Angela Rosana
Sep 07, 2023
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Muito interessante essa reflexão, ótimo texto.

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